Severino Ibério nasceu em Vitória de Santo Antão. Em 1974.
Era retrato de poucas esperanças a vida do tal menino Severino. Com pouca
comida, pouco dinheiro e pouca educação. Muito trabalho, muita areia e muito
chão. Afinal, aos 5 anos Severino já viajava várias vezes ao Recife com o pai,
pra tentar arrumar um trocado engraxando sapatos. Seu pai não tinha passado
muito tempo na escola, e dizia logo ao filho que escola por muito tempo era
coisa de quem tinha pai rico. O pai de Severino não, ele era pobre. E assim o
era. Severino tinha que aproveitar o tempo trabalhando, dava mais dinheiro.
Aos 15 anos, ele queria ter tempo pra estudar. Ele queria
ter tido espaço naquelas andanças pra pegar num livro. Quer dizer, ele aprendeu
a ler com umas cartilhas antigas da mãe e lia o único livro que era menos de 10
cruzeiros no sebo: Dom Quixote de La Mancha! Fora esse, era saber ler pra onde
ia o ônibus, quanto custava a comida e quanto tinha dado o troco. Ele queria ir
pra escola pra aprender mais do que aquilo. Mas seu pai não tinha ido, sua mãe
também não. Seu primo também não, nem sua tia, nem tio, nem avós. Os vizinhos,
menos ainda. Lembrava sempre de ajudar sua vizinha mais antiga, Dona Quitéria,
tentando ler suas bulas. E assim ele achava que ajudava alguém na vida e ficava
de bem com a vida.
E lá fora, quando ele chegava no Recife, os meninos da sua
idade eram diferentes da turma dele. Havia gente que vivia bem, e Severino não
entendia o porquê. E não entendia porque os que viviam bem eram rudes. Ora, sua
mãe só era assim quando ficava brava ou estava triste. Severino achou que se
ele tivesse tudo o que tinham aqueles meninos, ele não teria motivo pra ser
triste.
Ele ouvia no noticiário, aos 23, que muitos pobres tinham se
dado bem na vida. Havia, se ele não se enganava, um sobrinho de um vizinho que
tinha passado numa escola melhor. Tava ganhando seus “reais” – novidade que Severino
não entendia que diferença tinha do cruzeiro – no Recife, melhor de vida. Mas
ele era um, no meio de tantos que Severino conhecia. E ele queria aquilo. Tanto
é que Severino uma vez irritou sua mãe de verdade. Ele pegou o dinheiro da
conta de luz e pagou a inscrição da escola técnica. Resultado: Mesmo depois de
ler aqueles livros velhos na madrugada, Severino não passou, teve que aguentar
umas palmadas e uma semana de sermão da mãe, e ainda trabalhar dobrado pra
pagar a conta.
Aos 30, já morando com a mulher numa casinha na Ilha de
Deus, no Recife, Severino virou Dom Quixote. Procurava sua Dulcinéia pelas
pontes belíssimas do Recife, sempre em prontidão para a aparição de algum navio
inimigo. Por isso, seu arco ia em seu bolso, e de vez em quando catava uma
flecha que achava perdida. Sancho Pança havia se acovardado, e ele agora tinha
uma missão muito difícil que enfrentava sozinho. Vivia de esmolas que os
burgueses lhe davam, e seu estômago revirava a cada vez que eles lhe olhavam.
Mas ele era um cavaleiro valente, e enfrentava tudo para achar Dulcinéia!
Às 9h30 da manhã do dia 14 último que passou, Dom Quixote achou o ônibus
movimentado do Recife um grande transporte para o sul, lugar onde Dulcinéia
poderia estar! E os vigilantes eram guardas do inimigo do rei. E a pistola uma
lança negra. E da discussão, um motivo para não fugir, pois era um herói! E da
discussão com motivo banal saiu um tiro. Estava selado o fim de Dom Quixote.
Severino era filho do sistema. Como eu, como você. Sem
oportunidade e com uma vida difícil e triste. O autor inventou quase a história
toda, exceto por uma coisa (talvez a que você se surpreenda mais):
O herói Dom Quixote é morto. Clique!
"Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina"[João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina]
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