segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Severino de La Mancha


   Severino Ibério nasceu em Vitória de Santo Antão. Em 1974. Era retrato de poucas esperanças a vida do tal menino Severino. Com pouca comida, pouco dinheiro e pouca educação. Muito trabalho, muita areia e muito chão. Afinal, aos 5 anos Severino já viajava várias vezes ao Recife com o pai, pra tentar arrumar um trocado engraxando sapatos. Seu pai não tinha passado muito tempo na escola, e dizia logo ao filho que escola por muito tempo era coisa de quem tinha pai rico. O pai de Severino não, ele era pobre. E assim o era. Severino tinha que aproveitar o tempo trabalhando, dava mais dinheiro.

   Aos 15 anos, ele queria ter tempo pra estudar. Ele queria ter tido espaço naquelas andanças pra pegar num livro. Quer dizer, ele aprendeu a ler com umas cartilhas antigas da mãe e lia o único livro que era menos de 10 cruzeiros no sebo: Dom Quixote de La Mancha! Fora esse, era saber ler pra onde ia o ônibus, quanto custava a comida e quanto tinha dado o troco. Ele queria ir pra escola pra aprender mais do que aquilo. Mas seu pai não tinha ido, sua mãe também não. Seu primo também não, nem sua tia, nem tio, nem avós. Os vizinhos, menos ainda. Lembrava sempre de ajudar sua vizinha mais antiga, Dona Quitéria, tentando ler suas bulas. E assim ele achava que ajudava alguém na vida e ficava de bem com a vida.

   E lá fora, quando ele chegava no Recife, os meninos da sua idade eram diferentes da turma dele. Havia gente que vivia bem, e Severino não entendia o porquê. E não entendia porque os que viviam bem eram rudes. Ora, sua mãe só era assim quando ficava brava ou estava triste. Severino achou que se ele tivesse tudo o que tinham aqueles meninos, ele não teria motivo pra ser triste.

   Ele ouvia no noticiário, aos 23, que muitos pobres tinham se dado bem na vida. Havia, se ele não se enganava, um sobrinho de um vizinho que tinha passado numa escola melhor. Tava ganhando seus “reais” – novidade que Severino não entendia que diferença tinha do cruzeiro – no Recife, melhor de vida. Mas ele era um, no meio de tantos que Severino conhecia. E ele queria aquilo. Tanto é que Severino uma vez irritou sua mãe de verdade. Ele pegou o dinheiro da conta de luz e pagou a inscrição da escola técnica. Resultado: Mesmo depois de ler aqueles livros velhos na madrugada, Severino não passou, teve que aguentar umas palmadas e uma semana de sermão da mãe, e ainda trabalhar dobrado pra pagar a conta.

   Aos 30, já morando com a mulher numa casinha na Ilha de Deus, no Recife, Severino virou Dom Quixote. Procurava sua Dulcinéia pelas pontes belíssimas do Recife, sempre em prontidão para a aparição de algum navio inimigo. Por isso, seu arco ia em seu bolso, e de vez em quando catava uma flecha que achava perdida. Sancho Pança havia se acovardado, e ele agora tinha uma missão muito difícil que enfrentava sozinho. Vivia de esmolas que os burgueses lhe davam, e seu estômago revirava a cada vez que eles lhe olhavam. Mas ele era um cavaleiro valente, e enfrentava tudo para achar Dulcinéia!

   Às 9h30 da manhã do dia 14 último que passou, Dom Quixote achou o ônibus movimentado do Recife um grande transporte para o sul, lugar onde Dulcinéia poderia estar! E os vigilantes eram guardas do inimigo do rei. E a pistola uma lança negra. E da discussão, um motivo para não fugir, pois era um herói! E da discussão com motivo banal saiu um tiro. Estava selado o fim de Dom Quixote.


   Severino era filho do sistema. Como eu, como você. Sem oportunidade e com uma vida difícil e triste. O autor inventou quase a história toda, exceto por uma coisa (talvez a que você se surpreenda mais):


"Desde que estou retirando  
só a morte vejo ativa,  só a morte deparei  e às vezes até festiva  só a morte tem encontrado  quem pensava encontrar vida,  e o pouco que não foi morte  foi de vida severina"
[João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina]





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